Nychollas Cardozo
Bem, venho aqui falar-vos sobre algo que considero não só um disco, mas uma bela e conceituada obra de arte. Preciso mencionar, obviamente, que sou suspeito em falar dessa banda, e principalmente desse trabalho em específico, mas não posso deixar de tecer as percepções e opiniões que tenho sobre ele. Falamos aqui de Halcyon Digest, o quinto álbum do conjunto, lançado em 2011 pela 4AD (a mesma gravadora de Ariel Pink, Animal Collective, entre outros).
O Deerhunter surgiu por meados de 2001, em Atlanta, Georgia;
tendo como líder Bradford Cox, o cara alto, magricelo e estranho que
infelizmente tem síndrome de Marfan. A banda se formou com a ideia de unir a
“propulsão do rock de garagem” com a música
ambiente, assim como já se auto descreveram “ambient punk”. Eles carregam
uma enorme gama de influências, e Cox é o tipo de pessoa que vai até a loja de
discos e ouve o que aparecer a sua frente, sabendo apreciar e absorver muita
coisa.
Mas enfim, falando do álbum: ele se abre com “Earthquake”,
uma das faixas mais experimentais do conjunto. Algo que flerta com a vanguarda
pré-setentista do Velvet Underground, e invoca as experimentações ambiente feitas pelo Slowdive, em seu
último disco, Pygmalion. A letra trata de uma personagem que acordou situada em
um terremoto e é questionando sobre as coisas que poderiam estar passando pela
sua cabeça naquele momento recém-desperto, em meio ao caos, ainda em processo
de assimilação. O que pode explicar a lentidão cadenciada da música e o aspecto
descritivo da cena. Com essa abertura, não se pode deixar de lado a produção e
mixagem do disco, que englobam todo o restante. São muitas camadas encharcadas
de efeitos, e se pudéssemos criar uma imagem sinestésica nesse aspecto, daria
para imaginar um cenário assim: um dia húmido na serra gaúcha, aquele dia no
qual a serração desce, atingindo os vidros dos carros e deixando-os foscos.
Essas “camadas” sendo a linha tênue entre a água condensando em gotas nos
vidros e a neblina, ainda pairando pelo ar gelado em meio às montanhas
crepusculares. Tudo isso em um esquema de cores preto e branco, como mostrado
em toda a arte do disco físico, além das fotos do encarte.
“Sailing” traz o lado mais folk à tona, a canção em si é só
voz e guitarra, e mostra uma razão existencial, transparecendo isso do jeito
mais confortável e inteligível possível, utilizando ruídos e efeitos que lembram
algo como o vento batendo nas velas de um veleiro que flutua na calmaria
marítima. Do mesmo modo que em “Fountains Stairs”, composição do guitarrista
Lockett Pundt, a sensação é de que você está ouvindo o outono e a primavera ao
pé do seu ouvido. Lembrando que o Deerhunter tem um pouco disso: letras de
autoajuda, o que pode parecer meio idiota, mas na realidade nada mais é do que
o diálogo do músico com o ouvinte sobre as dificuldades diárias e mundanas de
qualquer pessoa. “Desire Lines” também retrata essa situação, e falaremos dela
logo mais...
Um aspecto muito importante desse disco são as memórias: o
quão ele puxa situações da infância e juventude. A faixa que mais evidencia
isso é “Memory Boy”, que conta com takes
de gaita e um arranjo de cordas bem destacado. Ela nos leva a um insight do “protagonista”, que de um
verso para outro volta à infância/adolescência, onde se encontra em uma situação
de mudança. Supõe-se que sua família estaria trocando de lar, o que é mostrado
pela repetição de “It’s not a house
anymore” ou “I see you leaving/Don’t
forget your TV”. O narrador acaba retomando os bons tempos em que viveu
naquele lugar, e termina por relatar que a mudança teve um impacto psicológico.
Algo parecido ocorre em “Don’t Cry”, que transparece um diálogo de pai para
filho em suas estrofes, ou pode ser que seja Bradford dando conselhos para si
mesmo quando mais jovem.
“Desire Lines”, single
do disco e também escrita por Pundt, tem em si aquela função da qual havia dito
anteriormente, bem ressaltada no último verso: “Well, everyday do what you can/and if you let them turn
you’round/whatever goes up must come down”. A composição trata sobre as
dificuldades existentes entre a juventude e a vida adulta, representando as
sensações que o indivíduo pode passar enfrentando a “vida real” e os caminhos
que ela pode seguir. Há também a ideia de que as tais desire lines são aquelas estradas que se desviam do concreto e são
formadas na terra pelo excesso de passagens, desenhando um caminho alternativo.
O mais interessante dessa música é que após o fim do último verso e de sua
estruturação normal, ela passa a se tornar um improviso. Sim, a boa e velha jam, repetitiva e repleta de efeitos,
dando aquela vibe crua a garageira, apesar de refinada e bem
produzida. Essa é a fatia de maior deleite da música e da banda também, os
improvisos longos são característicos deles.
A excelente, e também single,
“Helicopter” é uma das peças sonoras mais originais e palpáveis. Quando que
algo tão experimental pode se tornar grudento (no bom sentido) e pop? Não há como explicar, mas é nessa
música que Cox mostra sua genialidade, e também é onde aquela descrição da
produção mais se encaixa. Os delays e
reverbs dos acordes dedilhados
parecem ricochetear às margens de um lago sereno e monótono. O refrão e os
versos são os mais bem marcados, e a letra tem sua explicação nas entranhas do
disco físico, que conta a história real de um ator pornô Russo que foi
envolvido em tráfico humano. É interessante também o contraste criado com a
bela e delicada canção e o tema trash tratado
pela mesma.
Por fim, o álbum termina com a longa “He Would Have Laughed”.
Também uma das mais belas composições presentes, e que de certa forma resume
bem aquela ideia principal do disco: da nostalgia, da mudança, das memórias,
tudo da vida que vai se tornando cada vez mais obscuro e termina com o bater
das botas. Sim, é bem provável que Cox se refira a isso em seus versos.
Acho que não existem critérios para justificar minha nota ao
álbum, ela simplesmente surgiu no momento em que pensei em fazer essa resenha.
Acho uma nota justa, pois enxergo essa obra como algo único e original.